16 de março de 2022

Artigo: O novo ensino médio: uma reflexão crítica

Luiz Marcos Silva é professor filiado do Sinteal

 

 

 

Por Luiz Marcos Silva*

 

Não é muito difícil perceber que o projeto do Novo Ensino Médio se propõe fazer uma “reforma” na educação básica. Um dos argumentos para tal “revolução” é que o mundo mudou, os jovens mudaram e o Ensino Médio tradicional já não os atrai, gerando desinteresse, evasões, repetências e desistências escolares. A proposta do “Novo Ensino Médio”, então, procura “agradar” o gosto dos jovens, dando-lhes mais espaço para o “protagonismo juvenil”; isto significa, inclusive, dar-lhes a liberdade de escolher o que querem estudar, ressalvadas as únicas disciplinas obrigatórias: matemática e português.

Em primeiro lugar, é contraditório que estes jovens que sempre foram “vitimizados” por, tão jovens, terem que escolher a profissão que abraçarão (leia-se: curso universitário) para o resto de suas vidas, agora são desafiados a definir o currículo que irá determinar não somente o seu futuro profissional, mas, principalmente, a sua formação básica. A primeira questão a ser formulada é: eles estão preparados para isto? E, em segundo lugar, têm conhecimento e maturidade suficiente para construir esta trilha?

Examinando as características do “Velho Ensino Médio” e do “Novo Ensino Médio”, pode-se divisar a associação do “Antigo” com a modernidade e suas influências iluministas e o “Novo” com a pós-modernidade e as influências de várias filosofias e ideologias que caminham na direção oposta. Se na modernidade o foco era a supervalorização da razão, consequentemente, a expectativa de que a ciência proporcionaria à humanidade um mundo melhor, criando sistemas uniformes, especialidades (e especialistas em cada área), etc. as duas guerras mundiais e a recalcitrante permanência da fome e da desigualdade no seio da humanidade (não obstante haver ciência e tecnologia suficiente para saná-las) gerou uma desesperança e ceticismo que impulsionaram o pensamento humano em outra direção: o pensamento pós-moderno, no qual são valorizados o subjetivismo (invés do objetivismo científico e racional), a diversidade, o multiculturalismo, o transitório (em lugar do permanente), o volátil (em lugar do estável: vide a obra do sociólogo Zygmunt Bauman: “Modernidade Líquida”), construindo uma nova lógica que direciona a humanidade a partir daí.

As mudanças do Novo Ensino Médio não atingem apenas a carga horária e os conteúdos; elas transformam a essência dos conceitos de educação e ciência, reformulando todas as ideias sobre a aquisição de conhecimento.

Desde a Grécia Antiga que se tem um currículo fixo e considerado essencial para o desenvolvimento da educação: o Trivium (latim, lógica e retórica) e o quadrivium (aritmética, geometria, astronomia e música). Mutatis mutandis, cada período histórico, ou seja, cada época elegeu as disciplinas consideradas essenciais. Tais disciplinas sempre foram consideradas as “ferramentas” com as quais se construíam os demais conhecimentos de uma dada sociedade. Elas foram, ao longo da história, sofrendo acréscimos até chegar à configuração atual, em torno de 10 a 12 disciplinas diferentes básicas. E ainda há discussões sobre a possibilidade da inclusão de outras mais.

Talvez os mentores do Novo Ensino Médio tenham olhado na direção errada ao levantar os problemas da repetência, da evasão, da desistência e do desinteresse dos jovens. Existem inúmeros fatores que contribuem para que estes fenômenos persistam na escola brasileira. Eles não abordam, por exemplo, a questão do modelo perpetuador de desigualdades sociais ao tratar os “desiguais” como “iguais”. Este é um tema tratado pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu, quando fala sobre a diversidade e desigualdade de “capital cultural” que existe entre os estudantes, ou seja, os alunos não chegam à escola com o mesmo capital cultural (alguns têm acesso à internet, teatro, cinema, livros, etc. e outros, não). Enquanto isso, a escola os trata como iguais, usando a linguagem do que têm elevado capital cultural, bem como suas cosmovisões, conceitos e formas de raciocinar. Neste contexto, os alunos de baixo capital cultural ficam completamente perdidos, achando que aquele lugar não é para pessoas como ele. Em segundo lugar, vivemos em uma sociedade hedonista – o prazer é o que dá sentido à vida – , logo, uma sociedade que prioriza o entretenimento – que num sistema capitalista (que transforma tudo em mercadoria) acaba se transformando numa indústria de alta lucratividade que é a indústria cultural, conforme se observa na obra de Horkheimer e Adorno. Na sociedade do entretenimento (hedonista) busca-se tornar tudo agradável e divertido; mesmo no ambiente de trabalho se criam opções para “desestressar”, “relaxar” e tornar o ambiente produtivo mais descontraído e informal; para isto, as tecnologias computacionais contribuíram para a existência do home office, criou-se o dia do vestuário informal, a atividade física para combater as lesões por esforço repetitivo, as salas de jogos e os espaços de lazer nas fábricas, as apresentações coloridas, acompanhadas de vídeos, músicas e diversão, etc. Enquanto isso, nas escolas, em particular nas públicas, pouco mudou: permaneceram os métodos tradicionais e as poucas mudanças introduzidas nem todas as escolas têm: Datashow, pincel e quadro branco, smart tv nas salas de aula, laboratório de informática, etc. Algumas permanecem na base do “cuspe e giz”. Enquanto isso, nas escolas da rede privada se tem lousa digital, ampla conexão da internet para todos os alunos e, é claro, como seu público pertence a classes sociais mais abastadas, estes alunos têm smartphone, tablets e demais modernidades tecnológicas.

Uma olhada atenta ao discurso dos defensores do Novo Ensino Médio parece que os mesmos compreendem o estudo como parte de uma lista de coisas alegres e divertidas que devem fazer parte da experiência dos jovens. Só que o poder público não cria condições para que esta visão se estenda até à realidade. Então, a diversão fica por conta do professor “ator”, “comediante”, “animador de auditório” …” palhaço”, etc. Tais apologistas do Novo Ensino Médio jamais se referem ao estudo como uma atividade laboral; e estudo é trabalho (só pra lembrar: trabalho vem da palavra tripalium que era um instrumento de tortura), ou seja, é algo que exige disciplina, renúncia e dedicação. Alguns escritores argumentam que “para se escrever um livro eles precisam de 5% de inspiração e 95% de transpiração” (trabalho). Parafraseando os escritores, o ato de estudar é constituído de mais trabalho do que de lazer, prazer ou entretenimento. Estudar exige o sacrifício do isolamento e da solidão – entremeado de momentos de socialização dos conhecimentos e/ou da aprendizagem -, muito esforço para entender temas complexos e resolver problemas difíceis. Tecnologias, internet, equipamentos eletrônicos são “atores coadjuvantes” neste processo e não os atores principais. Afinal, a nossa atividade-fim não é o entretenimento e sim o binômio ensino-aprendizagem.

A ênfase pós-moderna do Novo Ensino Médio conduz à “interdisciplinaridade” (o que quer que isto venha a significar, na prática!) levada às últimas consequências, ao ponto de um professor de Sociologia (juntamente com os de Geografia, Filosofia e História) – uma ciência cujo objeto de estudo é a sociedade e que se tornou ciência somente no século XIX -, ensinar sobre a origem do universo. Interdisciplinaridade é possível, mas tem limites. Quando a interdisciplinaridade é levada ao extremo tem duas consequências: Primeiro, o conhecimento produzido é superficial (o que têm os sociólogos a dizer sobre a origem do universo e um filósofo sobre a Era Vargas, e isto de forma consistente e profunda); Segundo, cada ciência envolvida na interdisciplinaridade sofre sua transformação reducionista, tornando-se incapaz de apresentar estudos relevantes quer sobre seu próprio objeto de estudo, quer sobre o de outras ciências. E, por último, mas, não menos inquietante, tal atitude gera uma diluição dos conteúdos estudados (é o suco de laranja com muita água). As ciências, via de regra, praticam a interdisciplinaridade, ora utilizando uma outra como ciência auxiliar – exemplo disso é o uso da matemática e da estatística nas pesquisas quantitativas de ciências humanas -, ora, como co-geradoras de conhecimento, quando o objeto de estudo extrapola a sua própria esfera e requer o conhecimento, o método ou know how de outra ciência.

A partir do Novo Ensino Médio não existirá mais o professor especialista; todos agora serão “especialistas em generalidades”; breve não haverá mais formações e licenciaturas em disciplinas específicas, mas, por áreas: haverá professor de linguagens, de ciências da natureza, ciências humanas e assim por diante. Provavelmente, restarão de disciplinas específicas somente as obrigatórias: matemática e português.

Esta é uma análise preliminar e pouco abrangente. Muitas coisas práticas sobre o Novo Ensino Médio e seu funcionamento não estão claras nem para os próprios técnicos do MEC. Todavia, pode-se antever uma confusão da Torre de Babel (fato narrado na Bíblia de quando Deus se zangou com os homens porque estes começaram a construir uma torre para alcançar os céus. Então Deus fez com que cada um passasse a falar em uma língua diferente). Aprende-se na universidade que o conhecimento científico tem como uma de suas características o rigor e a precisão de sua linguagem. Os significados das palavras em cada ciência/disciplina serão unificados nas áreas afins? Filosofia, Geografia, História e Sociologia, doravante, cunharão termos com o mesmo significado? Os métodos de pesquisa também serão unificados? E aqueles temas que outrora estavam fora da amplitude dos objetos de estudo de uma certa ciência, agora serão inseridos nela? As convenções científicas internacionais já aderiram ou irão aderir a esta nova forma de pensar a ciência ou nos tornaremos párias do mundo científico, parafraseando nosso Vice- Presidente da República, iremos criar uma “jaboticaba educacional” e científica? Teremos, então, uma forma tupiniquim de conceituar ciência? E de praticá-la?

Estas são questões que são levantadas sobre a essência do pensamento que se ergue por trás desse novo modelo de Ensino Médio que se insinua inovador. Do ponto de vista científico, ele parece mais desagregador e causador de mais problemas que soluções para a educação brasileira. Mas, tudo é novo e merece uma ampla discussão. Discussão esta que deveria ter acontecido antes deste projeto virar lei (Lei nº 13.415/2017). Aliás, a pressa é uma coisa estranha no que se refere à tramitação dessa lei: ela foi votada na forma de Medida Provisória, em vez de Projeto de Emenda Constitucional (PEC) – que levaria mais tempo para ser votada e seria de mais difícil aprovação e que daria ao povo brasileiro e aos educadores mais tempo para conhecer e discutir seu teor e suas consequências. A discussão não existiu e a Lei foi empurrada goela abaixo. Agora, só resta esperar para ver para onde o Novo Ensino Médio vai levar a educação brasileira.

 

*É professor e filiado ao Sinteal na região de Santana do Ipanema